O relógio indicava 20:00 horas. Atravessava descompassadamente às ruas estreitas e sombrias. No horizonte a lua cheia continha um aspecto transcendente e místico, ela imperava majestosamente e entre densas nuvens negras e escassas estrelas, fitava-me. Sentia o vento gélido bater-me na face e como se uma força magnética me puxasse, a mesma que me trouxera mais uma vez a essa misteriosa cidade, fui levado à boate que lembrava (como tudo por aqui) as tavernas medievais por sua característica gótica. Sentado a mesa ao canto eu degustava uma taça do mais nobre vinho e via homens e mulheres engolindo, vorazmente, ao som do Doors, suas bebidas.
Uma espessa fumaça de cigarros e de diversas substâncias entorpecentes impregnava o ambiente. Eu também não me encontrava em sã consciência. Meus sentidos já estavam embriagados de tanto beber vinho, e embora não estive-se fumando, sentia a fumaça encher-me os pulmões. O clássico toca-discos entorpecia a todos, e a música levava-os ao êxtase. Da minha mesa via-os dançando freneticamente e às gargalhadas. Uma atmosfera mística e poética envolvia-os.
Em uma época de forte repressão e de moralismos viciosos a cidade era o lugar excelente para sentirmos verdadeiramente livres. Acho que é exatamente por isso que estou mais uma vez neste lugar. Sentia, assim como os demais freqüentadores, que podia fazer de tudo, principalmente de ser quem realmente sou - o que significava em não receber as ácidas críticas pelas minhas opiniões nada convencionais -, embora não me preocupasse com elas. Além disso, ninguém tinha a necessidade de pintar as faces com as famigeradas mascaras exigidas nas demais atividades cotidianas: trabalho, vida acadêmica, vida familiar, amorosa etc. Em todos os finais de semana as pessoas vinham para cá embebedar-se e se alimentar da liberdade que o local lhes proporcionava. E pelo ritmo que as coisas iam se processando provavelmente iria também tornar-me um freqüentador assíduo.
A boate se confunde mesmo com uma taverna dos tempos antigos, está localizada num sítio que se transformou em uma pequena e mística cidade, cercada por muitas árvores e arbustos, das quais uma se destacava das demais, fixada no meio da praça, pela sua aparência bizarra, cujos galhos se lançavam a rasgar o espaço. O proprietário é um velho rico e sádico que esbanja excentricidades. O chapéu em sua cabeleira, sua longa barba branca, sua roupa extravagante e sua baixa estatura me faziam lembrar um gnomo. Seu sonho sempre fora projetar uma cidade em que se vive longe das regras da sociedade, e onde as pessoas pudessem gozar de plena liberdade. E a misteriosa cidade construída por ele em nada lembra daquilo que se possa considerar como normal, começando pelo nome: Transilvânia. Tudo, na cidade, assemelhasse a Europa dos tempos medievais. Sua arquitetura fora projetada segundo os padrões da estética gótica da Europa medieval: ruas íngremes, asfalto de pedras, praça, calabouços, boates, hotéis e motéis; Tudo formulado segundo os moldes da estética gótica medievalesca. No que dizia respeito a sua geografia, Transilvânia, comporta um terreno de oito hectares, o equivalente a aproximadamente oito campos de futebol, cercados por todas as partes por altos muros, a única entrada são os imponentes portões de grades de ferro, cujas maçanetas são ornamentadas por pequenas e bizarras criaturas. Uma placa se destaca onde esta escrita com letras maiúsculas: TRANSILVÂNIA: É PROIBIDO PROIBIR. Não há casas, mas hotéis e motéis espalhados por todos os lados, e boates como essas com aparência de tavernas, que oferecem os mais diversos tipos de bebidas regadas a muita música.
Nesse estranho lugar também não se encontra nada que faz lembrar a realidade do mundo contemporâneo. Não existem agências bancárias, shopping centers, indústrias, supermercados e instituições do Estado. Há um modelo político próprio onde a lei máxima é: faça o que tu queres, pois há de ser tudo da lei. Outro fato estranho e curioso é que Transilvânia só abre seus poderosos portões nos finais de semana, ou seja, de segunda a sexta não é visitada por ninguém, pois se encontra fechada em seu mistério místico.
O sombrio lugar é visitado por pessoas que podemos considerar como fora dos padrões sociais, ditos normais, que vivem à margem da lei, e que transgridem normas pré-estabelecidas e valores morais da cultura emergente (Judaico-Cristã). Hippies, Góticos, Punks, Roqueiros, Metaleiros, Regueiros, Desempregados, Vagabundos, Ciganos, Bêbados, Poetas, Filósofos, Homossexuais, Bissexuais, Lesbicas etc. E todos os tipos de pessoas que fogem da normalidade e do senso comum, e por causa disso se tornam vítimas de discriminação e excluídas da sociedade conservadora e de "boa conduta moral". E assim vem para cá encontrando refúgio e acolhimento, sentido-se aceitas e em casa e onde possuem a liberdade de fazerem as próprias regras cujo único lema é o Carpe Diem do Poeta Latino Horácio.
Pude perceber que os freqüentadores da sombria cidade apresentam - além do comportamento “desviante” e fora da “normalidade” – outros traços que de certa forma os assemelham – e eu não me excluo dessa característica -: o ódio à repressão e aos valores convencionais; o amor as diferentes artes; o amor à ideologia libertária da anarquia e, por último, o fato de serem amadores das voluptuosidades dos prazeres mundanos. Desse modo, não é de se estranhar que orgias e bebedeiras são super freqüentes por aqui. Para eles, a urbe representa a libertação da opressão que a sociedade lhes impunha.
Aqui os heróis não são os astros do futebol ou as celebridades das novelas, mas os grandes poetas e pensadores. Principalmente Nietzsche e Crowley, que são aclamados e admirados por todos: um pelas suas idéias filosóficas de contundentes críticas à Cultura Cristã e o outro pelas suas idéias bizarras e demoníacas. Lord Byron e Baudelaire são os Poetas mais recitado nas boates - tavernas. E Dioniso é cultuado, onde sempre se ouvia, em meio a musica, proclamarem o nome do Deus pagão. Além do mais, para aguçar ainda mais a minha curiosidade, um manto de mistério e misticismo desenha a face da cidade. Dizia-se também que era habitada por seres e criaturas sobrenaturais, e que, durante as noites de lua cheia, uma bela mulher aparecia para seduzir os homens. Entretanto, pouco se sabe sobre essa roupagem mística que envolve os limites da misteriosa Transilvânia.
Transilvânia é realmente um lugar à parte do mundo. Situava-se numa região em que as câmeras e os holofotes da mídia não entravam, e a população de um modo geral não conhecia a existência de tal lugar. Mas depois de uma notícia divulgado pela imprensa há dois meses, sobre as atividades nada convencionais que aconteciam, críticas e difamações tornaram-se constantes por parte de membros das igrejas cristãs. Não se sabe ainda como essas informações vazaram, mas provavelmente foi um dos freqüentadores – concerteza infectado pelo verme do moralismo - que deve ter se assustado com o lugar e resolvera tornar público tudo o que acontecia ali. Os moralistas passaram a acusar os freqüentadores de um bando de pessoas devassas que viviam de forma desregrada, e que, por causa de seus comportamentos imorais, iriam todos queimar eternamente no fogo do inferno. Autoridades religiosas e políticas fizeram de tudo para fechar Transilvânia, mas os processos contra a cidade foram freados por meio de suborno e corrupção. Que ironia, se dizem pessoas de" boa conduta moral", mas não recusavam um bom montante de dinheiro. Para mim, eles não passavam de um bando de hipócritas.
Para passar o final de semana e saborear de todas as coisas (bebidas diversas, comidas, drogas, camisinhas, hotéis, motéis e principalmente sexo etc.) oferecidas em Transilvânia, você tinha que desembolsar cem reais, não é uma quantia alta levando em consideração tudo o que a cidade lhe proporcionava. Quem procurava por sexo fácil e sem compromisso estava no lugar certo. Aqui homens e mulheres poderiam se relacionar sexualmente sem se preocuparem com ligações afetivas, e ambos os sexos poderiam ter vários parceiros. Assim, a poligamia rolava solta.
Depois de ter experenciado tantos acontecimentos e te ter vivido tantas loucuras, me sentia renovado. Hoje é a quinta vez que venho passar o final de semana nesse sombrio lugar, e está se afirmando o que eu pensara, a cidade representa tudo àquilo que há anos vinha procurando. Fiquei sabendo de Transilvânia na universidade, onde eu faço a faculdade de Letras e pratico minha profissão de Poeta Vagabundo (sem mascaras e criticado pelas minhas visões de mundo) e sou amante de todas as grandes artes. Odeio trabalhar e sempre vivi no ócio criativo, pois amo passar horas labutando meus sublimes textos e lendo diversos livros - transitar pela imaginação era a minha maneira de fugir da mediocridade - não suportava a náusea que invadia a vida. Considero-me um libertino e um transgressor dos valores diluídos na sociedade e que norteiam o comportamento das pessoas - não consigo imaginar como alguém pode se submeter a tais valores que, em última instancia, assina um atestado de óbito à vida. Não sou nenhum Marxista utópico, - embora admire a obra desse grande pensador - mas um rebelde do sistema social vigente, pois, assim como os freqüentadores de Transilvânia, também não conseguia me ver nessa sociedade alienante e conservadora.
As pessoas me achavam um sujeito muito esquisito - me chamavam de bastardo insano e de louco – fui criado num orfanato e sempre que era adotado por uma família era devolvido, alegavam que eu vivia dizendo coisas absurdas e sem sentido. Acho que meus pais biológicos haviam pressentido que minha índole e meu modo de ser não iam se enquadrar aquilo que era considerado como normal, sendo também o provável motivo pelo qual não me quiseram; sempre fui de poucos amigos, e para suprir alguma falta afetiva vivia mergulhado nos livros. Enquanto meninos da minha idade brincavam de vídeo game, de bola e liam quadrinhos extremamente bobos, eu vivia debruçado na literatura e filosofia.
Ingressei-me na universidade e depois de dois anos sentia-me profundamente cansado com tanta idiotize e banalidade que tomava de conta do mundo acadêmico, de estudantes escravos da mídia, das merdas de reality shows e novelas, e de bandas e cantores medíocres fabricados pela ideologia da indústria cultural. Cansado do moralismo e da indiferença a tudo que era magnífico no curso, a saber: Literatura, Poesia e Filosofia que considero a minha Santíssima Trindade.
Na verdade a atmosfera vampiresca e a arquitetura lapidada pela estética gótica me lembravam os contos sombrios e cheios de terror de Edgar Allan Poe, e isso me deixava extremamente motivado e cheio de vida, e expulsava a maldita depressão que ultimamente me vinha dominando. Não sei por que, mas o sombrio, o gótico, o ambiente lascivo, os vinhos, as substâncias alucinógenas e inteligentes e belas mulheres de pele alva muito me atraem. O que me da à absoluta certeza de que também encontrei em Transilvânia meu acolhimento.
Pedi mais vinho e enchi a taça até a borda. Olhei para as luzes; observei que estavam fracas, o que dava ao ambiente um ar sombrio. Lá fora a lua cheia continuava a imperar mística e majestosamente entre nuvens e estrelas. Via a sua luz banhar a cidade e a atravessar as vidraças da janela batendo-me na face. A música acalmara, as pessoas se esfregavam despudoradamente entre si e começavam a se despirem. - “Viva ao império dos sentidos, viva a Dioniso”- bradavam completamente bêbados; e eu observava-os degustando um delicioso vinho. A taça na mão direita e um poderoso alucinógeno, na esquerda.
- “Há mais mistérios entre os céus e a terra do que pressupões a vossa vã Filosofia” - disse-me um estranho que se aproximou e se sentou na cadeira ao lado.
- Hamlet de William Shakespeare- disse-lhe
- Tenho lhe observado, já lhe vi outras vezes por aqui, seus olhos são indagadores.
- Hoje é a quinta vez que venho a Transilvânia- respondi.
- Sou freqüentador assíduo, e conheço todos os mistérios místicos da cidade.
- Místico?- perguntei-lhe
- Da Rainha da Noite e de sua sedutora beleza.
E assim ele me contou sobre um misterioso mito que cercava os limites de Transilvânia. Falou-me que nas noites de lua cheia, ou como também se costumava chamar, lua negra, uma bela mulher feita de sangue e desejo, de corpo esbelto, cabelos ruivos, pele alva, lábios lânguidos e olhos negros, profundos e sedutores - apresentava-se completamente nua para um homem -, escolhido meticulosamente por ela. Disse que ela era perita em seduzir homens solteiros, que lhe apresentava grande virilidade e apetite sexual, e deles sugava sua energia vital depois de uma noite de ardentes orgias. Disse-me que na bíblia ela é conhecida como a Rainha do Sabbath, aquela que tentou seduzir o Rei Salomão, e que por ter reivindicado seu direito de mulher como sendo igual ao homem, fora expulsa do Jardim do Éden, e transformada, passando a ser conhecida como um demônio alado noturno assolando o mundo antigo. Seu nome foi apagado da historia da cultura ocidental pelas autoridades eclesiásticas da igreja católica.
- O catolicismo em tudo coloca as mãos- disse-lhe.
- Sim, e distorce a historia e escolhe os heróis - disse o homem logo após acender seu cigarro.
- Como havia dito, eu o tenho observado. Eu e minha companheira de vermelha encostada no canto da parede.
Olhei na direção em que ele me indicou através de seus olhos. Observei dos pés à cabeça a lindíssima mulher que acompanhava aquele sujeito, parecia conter a beleza de mil donzelas virgens. Porém uma beleza ora angelical ora demoníaca, ora pura ora pecadora. Sua face parecia ser desenhada pelas mãos dos deuses e seu corpo belo parecia uma escultura esculpida pela luxuria e lapidada com sequiosos e lascivos desejos; uma verdadeira obra de arte feita por Deus e pelo Diabo. Ela fazia acender e explodir minha libido, fazendo-me almejá-la nem que seja por um segundo.
- Eu e ela entramos num consenso - prosseguiu o sujeito - e vou lhe falar sem pestanejar: o que acha de passar a noite conosco?
Embora bêbado e a beira da insanidade, provocada pela substancia ilícita, entendi perfeitamente o que ele pretendia. Sexo a três até que fazia parte de minha fantasia sexual, porém, eu e mais duas mulheres e não com outro homem, como pretendia o tal sujeito. Sou totalmente heterossexual e nunca na minha vida havia imaginado a possibilidade de deitar-me com uma mulher e mais um homem e só de pensar sentia náuseas profundas, entretanto, diante dessa magnitude beleza, diante das límpidas águas de um riacho e da eclosão de pura poesia, torna-se demasiado difícil de recusar a proposta. Mas não - digo não com extremo pesar e extrema angustia - meu orgulho e meu ego falam mais alto, portanto, vou dispensá-lo sem lhe dá nenhuma chance, mesmo sabendo que poderia beijar os lábios volumosos dessa Afrodite.
- Não, obrigado! - falei gaguechando um pouco e hesitando.
Ele titubeou. Senti que queria tocar-me, mas meu semblante nada contente repeliu suas investidas, então, levantou e foi até a belíssima mulher. Começaram a se beijar ardentemente, ele a tocou firme na cintura e as mãos passeavam pelo corpo e lentamente iam subindo até os macios e belos seios, notei que ela olhava provocativamente e de quando e quando sorria com malícia para mim. Senti demasiada inveja e por um momento queria está no lugar daquele sujeito. Passaram-se alguns minutos, e ele ainda a beijava, a tocava, a acariciava. Pararam, ele sussurrou algo no ouvido dela, - ela sorri para mim, um riso hipnotizante, que me deixa devaneando. Ele andou entre as pessoas, foi até o balcão, pediu uma bebida e em seguida saiu da boate-taverna, deixando-a sozinha. Esse era o meu momento, em um único gole bebi todo o vinho que estava na taça, levantei abruptamente e ao olhar ela já não estava mais lá, havia sumido. Como poderia sumir em questão de segundos? Não conseguia acreditar, voltei a sentar invadido por uma grande frustração e uma forte melancolia. Restava-me esperar, talvez ela volta-se. Passou-se meia hora, uma hora e ela não voltou.
Olhei por todas as partes e observei que todos se acariciavam, se apalpavam, se beijavam, estavam ensandecidos, mergulhados no mar de desejos. Na verdade, eu estava preste de presenciar uma orgia sem fazer parte dela. Será que de todas as noites que passei em Transilvânia essa será a que passarei sozinho?
O relógio marcava 3:00 da madrugada. Estava cansado e bêbado e o alucinógeno me fazia perder a noção da realidade. Lá fora o frio persistia e o vento murmurava.
Depois do meu último gole coloquei o casaco e percorri os interiores da noite gélida. A lua observava-me dando à minha sombra um ar fantasmagórico, parecia que alguém estava à espreita. Passei a ver misteriosos olhos que brilhavam na tenebrosa escuridão - era uma coruja que me fitava e soltara uma torrente de gritos -, voou e pousou na bizarra arvore da praça, passei por ela e pelos arbustos. Ouvia sussurros. O frio deixara minha respiração ofegante. Apressei os passos, fui diretamente para o hotel em que estava passando as noites.
Ao chegar, debrucei-me na cama. Após fechar os olhos senti uma presença. Olhei, mas minha visão estava fraca e enegrecida. Havia de fato alguém, uma silhueta espessa, alta e quente que exalava um aroma delirante.
- Quem está aí?
- Eu vi o quanto você me desejava.
A voz ressoou harmoniosamente como as notas de um concerto musical.
Aproximou-se completamente nua.
- Possua-me, meus quadris são castos, virginais, fortes, e minhas coxas são macias e lisas...
Acordei, a luz do sol passava pelas frestas das janelas, havia amanhecido em Transilvânia. Olhei por todas as partes, não havia nenhum vestígio da noite passada. A porta não estava completamente fechada. Será que fora um sonho?
FIM!